Cão não usa máscara
#185 Hoje em dia, as pessoas têm mais interesse em assuntos do diabo do que nas informações sobre o céu.
Cabezas Cortadas, 9 de fevereiro de 2024.
CÃO NÃO USA MÁSCARA
Padre Pedro era o pároco da Igreja de São Benedito.
Em uma manhã de segunda-feira, em uma roda de senhoras, padre Pedro ouvia a discussão sobre o que um dia foi a obrigatoriedade do uso de máscaras e queixava-se da baixa presença de fiéis nas missas dominicais, quando foi interrompido por um homem acompanhado de um cão.
– Hoje em dia, as pessoas têm mais interesse nos assuntos do diabo do que nas informações sobre o céu – disse o desconhecido de olhos brilhantes, enquanto o cão, orelhas baixas, sentava na calçada.
– Como você se chama, meu filho?
– Nasci em vinte e nove de agosto, seu padre.
Indiferente aos olhares franzidos de reprovação exibidos pelas senhoras, padre Pedro não se fez de rogado e, curioso, sorrindo, entrou na polêmica:
– Meu filho, me diga um coisa: até estes dias, quando era obrigatório, você usava máscara como todo mundo?
– Se eu fosse como todo mundo talvez usasse, seu padre.
– Posso saber por que você pensa que não é como todo mundo?
– Porque bebo, seu padre.
– E por que você bebe, filho de Deus?
– Porque se eu afirmar que não bebo e disser tudo o que digo, vão me tomar por louco, seu padre. Quem bebe não usava máscara.
– E você pensa que elas deveriam ter sido usadas ou estávamos todos errados?
– Seu padre, todo o mundo é que faz coisas sem pensar; e eu ainda estou por aqui.
– Não sei se entendi – falou o condutor da paróquia, com ares de quem esperava uma nova frase, ou explicação.
Dez segundos de silêncio, olhar fixo e um meio-sorriso enigmático em sua direção fizeram com que padre Pedro, prudente, mudasse de assunto:
– E esse atento cão, é seu?
– Eu ando com ele e ele anda comigo, seu padre, mas não sou o dono dele não.
– Será que ele não tem um dono?
– É por isso que digo que bebo, padre. Afinal, quem é dono de quem neste mundão de Deus?
– E nome, ele tem nome?
– Começamos a andar juntos em trinta de agosto, um dia depois de meu aniversário.
– Acho que entendi. E foi você quem ensinou ele a sentar?
– Normalmente, quando senta, humilde, ele é que me ensina – respondeu o homem, olhando para o cão.
Depois, calado, ajoelhou-se, abraçou seu companheiro de rua e, sendo lambido, pareceu chorar. Ao levantar, desviou seu olhar.
– Muito bem. Está tudo muito bem! Tudo bem – disse padre Pedro em três fôlegos, encaminhando, resignado, o fim da conversa. – Gostei muito de conhecer você. Quero vê-lo na Igreja de São Benedito no próximo domingo!
– Padre, tempo virá em que a colheita será igual à semeadura – falou o homem, agora de olhar longínquo, espetando um dedo em direção aos céus.
A seguir, como um maestro a reger o silêncio, voltou-se em direção ao cão sentado. Um sutil movimento de mão colocou o amigo nas quatro patas e lá se foram os dois, mão e rabo abanando, caminhando na direção de onde vieram.
Na manhã seguinte, terça-feira, as beatas do padre Pedro faziam compras no bairro e, sem a presença do pároco e sem máscaras, falavam e falavam.
Foi assim que Georgy Butka, o açougueiro que ouvia clássicos, soube da existência de uma espécie de profeta andarilho que atendia pelo nome de Vinte e Nove de Agosto e andava com um cão.
Também foi assim que Peter Cat, o dono da cafeteria, teve certeza que máscaras nunca fizeram o menor sentido para os excluídos da cidade.
Cabezas Cortadas, o filme do Glauber Rocha, é, na definição do Google, um delírio déspota na terra do General Franco.
Deixa eu lembrar meu pai…