Café da manhã
#145 Bruna aguardava, com a sinistra paciência dos jacarés, uma alma inocente que lhe trouxesse café na cama.
Lessines, 5 de maio de 2023.
CAFÉ DA MANHÃ
Bruna aguardava, com a sinistra paciência dos jacarés, uma alma inocente que lhe trouxesse café na cama.
Lembrou que Marcelo provavelmente já havia saído para trabalhar e que ela havia dispensado os serviços da Constanza. Lembrou também que não existia nenhuma Constanza. Pelo menos não a seu serviço.
Resistiu. Os jacarés são assim, couro duro. É preciso honrar a natureza e esperar. Nenhum movimento em vão.
Cheiro de café é mais ou menos como uma sexta-feira: anuncia algo que nunca será, exatamente, como as expectativas geradas – mas é, em si, uma maravilha. Bruna não sabia onde havia lido isto. Sua memória era ótima. Faltava o café.
Olhando reto para a frente, aos pés da cama, sobre uma herança da primeira viuvez da tia Norma – “filha, não é um banco, é um lindo récamier” –, um amontoado de roupas brancas e sua bolsa mais vistosa.
Olhando para um lado, uma cortina. Para o outro, Bruna não via sombras nem o menor sinal de movimento na luz que vazava por baixo da porta do quarto. Melhor não mexer a cabeça.
Na penumbra do dormitório, a rua fazia mais silêncio do que o normal; o zumbido nos ouvidos aumentava de olhos fechados, os pés latejavam e o incômodo no pescoço revelou-se um colar.
Dona Nair, a vizinha de cima, foi ao banheiro. Lamentável. Protegendo-se, Bruna puxou o lençol à altura dos olhos.
Jacarés hibernam quatro meses. Bruna, sem café, com dores generalizadas e sem conseguir achar seu celular, começou a recordar o que já sabia: a festa de réveillon na casa da tia Norma.
Convidados, muitos convidados. Pessoas elegantes, bonitas, sinceras. Outras, só pessoas. Música, muita dança. Comida e bebida. Muita bebida.
Ano passado tia Norma havia cancelado, em nome da saúde de todos, as comemorações. Este ano, não. Este ano teve festa, e prometeram que seria com o valor de duas. Muita gente – meu Deus, que coisa boa. Abraços e beijos. Muitos.
Tudo ia bem demais, até a biblioteca já dançava em círculos, quando alguém gritou:
– Aproveitem, no próximo réveillon pode ter isolamento social. De novo!
– Então, um com o valor de três! – Foi a resposta que se ouviu.
Com a multiplicação, a festa ficou ainda melhor.
Jacaré tem vida longa e boa memória: era o primeiro dia de janeiro do novo ano. Feriado.
No caminho da cozinha, Bruna achou seus sapatos e o celular já sem bateria. Lembrou que era solteira e que o Marcelo tinha viajado, para não voltar, havia três anos. Precisava café.
– Vai ser um longo ano.
Vitor Bertini
Lembrou de alguém?
A página que você está lendo é mantida unicamente por seus leitores, sem patrocínios ou publicidade. Se você acha que essas Histórias do Bertini, por um sorriso ou reflexão, valem um café por mês, aqui vai um botão para tornar isso realidade. Obrigado.
René Magritte (Lessines, 21 de novembro de 1818 – Bruxelas, 15 de agosto de 1967) foi um espetacular pintor belga e um dos expoentes do Movimento Surrealista.
Uma de suas principais obras tem o nome de A traição das imagens (La Trahison des Images), mostra um cachimbo sobre a frase Isto não é um cachimbo (Ceci n'est pas une pipe) e está no Museu de Arte do Condado de Los Angeles.
O texto a seguir não é um texto: é uma insidiosa publicidade dos serviços prestados pelo autor que vos escreve.
O DIABO VENDE PRADA*
Caminhando nas lajotas decoradas do piso da Galleria Vittorio Emanuele, em Milão, Itália, um blazer na vitrine da Prada chamou minha atenção.
Sob o olhar atento de um vendedor entrei na loja, pedi para ver o casaco e, em silêncio, fui conduzido à frente de um espelho.
Enquanto segurava o casaco para eu vestir, sorrindo, ele perguntou sobre as circunstâncias em que eu pensava usar a compra:
– Occasion?, arriscou.
Quando respondi que não sabia, que eu era só um escritor e que na verdade pouco necessitava de blazers, ele pediu licença e se afastou.
Voltou em cinco minutos, ajustou o caimento e colocou uma caneta tinteiro Montblanc Writers Edition 1812 no bolso interno da peça que eu experimentava. Depois, recuando dois passos para eu poder me ver por inteiro no espelho, perguntou:
– How do you feel? Ready for the autographs?
Na despedia, junto com um aperto de mãos, me contou que a Prada promovia concursos literários e que a edição de 2017 tinha tido como tema a frase Inner Landscape.
Comprei o casaco sonhando com a noite de autógrafos.
* Parte da palestra “Vender é contar histórias”, por Vitor Bertini.
O meu chapéu, por favor.
Bom fim de semana.
Café da manhã é um conto brilhante, contém com uso preciso os elementos da Literatura: suspense, mistério, expectativa, figuras de linguagem (metáfora, analogia), história cursiva e evolutiva. Com grande recurso narrativo o autor transforma um recorte banal e passivo da vida de sua personagem em uma heroína na sua dura batalha de encarar sua própria realidade. Parabéns!