Café com Alma
#227 Ontem, buscando inspiração, encontrei nas nuvens o amigo Alma Lima.
Canela, 22 de novembro de 2024
Dizem que a Sapucaí é longa. Não sei. O que sei é que a semana foi curta.
Boa leitura e bom fim de semana.
CAFÉ COM ALMA
Ontem, buscando inspiração, encontrei nas nuvens o amigo Alma Lima.
Mensagens de saudação e saudades, convite para dois dedos de prosa aceito, local e hora do café sugeridos por ele e a despedida do sempre livreiro, citando Pessoa:
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso ser nada.
À parte disso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Mais dois minutos, e uma nova mensagem, agora de voz, parecia acrescentar pautas para o nosso encontro:
— Talvez um país precise ser descoberto dia a dia. Falamos na confeitaria.
Cheguei antes do horário marcado, só para encontrar o Alma já acomodado e em pleno exercício de suas leituras.
— Salve! Seja bem-vindo — falou levantando-se, enquanto abria um sorriso e estendia seu abraço de homem alto.
— Alma, meu amigo. Obrigado por aceitar o convite.
— Eu que agradeço. Estava mesmo precisando sair um pouco — às vezes, um passeio no mundo real ajuda o texto.
— Opa! Escrevendo?
— Colocando a correspondência em dia — respondeu, fazendo um gesto para eu sentar ao mesmo tempo em que apontava para algumas folhas impressas.
O Salão Bar Jardim, com seus espelhos e mesinhas do início do século passado, as conversas em tons polidos e o cheiro de café, na centenária Confeitaria Colombo, me trouxe memórias e um breve silêncio nos instantes em que terminava de me acomodar à mesa.
— Faz tempo que eu não venho aqui — falei, retomando a conversa.
— Escolhi o local por preguiça, fica perto do que agora é minha biblioteca, e por esperança.
— Esperança?
— Esperança que a história da confeitaria e seu endereço ajudem minhas considerações.
Diante do meu olhar intrigado e de novo silêncio, Alma Lima separou duas folhas impressas e explicou-se:
— Esta é uma das correspondências que preciso responder — e veja que é datada do ano passado! É uma pequena lição de recursividade e interpretação de nossos grandes autores sobre a identidade brasileira. Vai de um ensaio do jovem Machado de Assis, de 1873 — ele tinha 34 anos de idade — intitulado Instinto de Nacionalidade, até os ensinamentos de João Guimarães Rosa, passando por Euclides da Cunha e Gilberto Freyre. Não é pouca coisa, certo?
Como resposta à minha cabeça que assentia, ele continuou:
— Entretanto, preciso confessar que me encantei com um parágrafo, logo no início da mensagem. Ele diz “sinto cada vez mais que o Brasil precisa ser descoberto. Fico me recriminando, porque a conclusão parece um desrespeito à trajetória de tantos brasileiros desde 1500. Por outro lado, o que me vem à mente é que talvez um país precise ser descoberto dia a dia”.
Tomou um gole rápido e seguiu:
— Este é o ponto! Estamos retrocedendo, se é que você me entende.
Tomou um gole mais longo:
— Eu concordo com a necessidade da redescoberta. Vivemos dias tenebrosos, meu amigo, tenebrosos. Dias inacreditáveis.
Enquanto eu repetia mentalmente a expressão “dia a dia” e pensava em como ela poderia ajudar minhas inspirações, o ex-dono da Livros com Alma seguiu falando e justificou, quase em um único fôlego, sua improvável esperança na escolha do local:
— Estamos na Confeitaria. Mas, antes, estamos na antiga rua dos Latoeiros, agora Gonçalves Dias — o poeta maranhense: aqui Tiradentes foi preso e daqui saiu o primeiro bonde em direção à Zona Sul. Aqui perto ficava a livraria. É para cá que eu vinha, dia a dia, tentar me descobrir. É para cá que eu ainda venho. Não consigo sair dos livros que deixei; é neles que moram as minhas esperanças.
Depois, recomposto, recolheu a folha que restara intocada, retomou seu ritmo e falou do meu convite:
– Não sei se vai ser a inspiração que você procura, mas, este panfleto mistura tudo, mostra um pouco do que já vivi e denuncia o que me assusta todos os dias.
Falou, coçou a cabeça, e me alcançou uma espécie de currículo parlamentar:
— Tome, é o que temos para hoje.
No impresso, um nome de guerra, dois cursos complementares ao bacharelado, o cargo atual, o número de votos recebidos, as principais iniciativas do mandato, os cargos públicos anteriores, as atividades comunitárias, as supostas qualidades de liderança e articulação política, a nomeada de uma comissão permanente, dois projetos de Lei, um prêmio recebido, uma referência ao entendimento da língua espanhola escrita e um feito de destaque: leu um livro.
Meu sorriso foi retribuído com outro sorriso e um aceno ao garçom, pedindo a conta:
— Ô Esteves, a conta por favor.
Junto com a minha lembrança do verso Tabacaria em nossa troca de mensagens, e antes que eu arregalasse os olhos, Alma Lima complementou:
— Conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
Vitor Bertini
A lojinha, testemunha de um escritor vivo:
Livros do Bertini:
Não me abandone
A Profeflor
Publicações do mesmo cidadão:
Unleashed Stories
A história da sexta
Ficamos assim:
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
…
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
…
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
— Tabacaria, Álvaro de Campos, Fernando Pessoa.
Força na peruca.