Cheiro de gente, 5 de abril de 2024.
No mesmo ônibus viajarão, sem falar uma com a outra, a Olita de hoje – em uma outra circunstância da vida – e a tia Norma de sempre: o livro está a caminho do prelo.
Enquanto isto, encantada com o que ela chama de perspectivas da brutalidade, tia Norma me contou que vai adotar duas cachorras: a Frieza e a Virtude. Se eu estiver vivo, conto a história.
Com os votos de que cada um consiga nomear seus próprios cães, tenhamos todos um bom fim de semana. Boa leitura.
BICHO DA GOIABA
Quando Olita entrou no ônibus, todos sabiam que ela carregava uma sacola com goiabas.
– Hoje é pro santo ou pra patroa? – Perguntou seu Paulo, o motorista de calças arregaçadas, ainda de pé ao lado de seu assento, esperando a hora de começar o itinerário.
– Você é patrão ou santo? – Respondeu Olita, fingindo seriedade, enquanto depositava duas frutas nas mãos estendidas do seu motorista de quase todos os dias.
A famosa “goiabeira da Olita” tinha vinte anos de idade, seis metros de altura e produzia goiabas três vezes por ano.
– Faz assim: poda todos os galhos que brotaram no ano, menos dez, e ensaca as frutas uma a uma. O saquinho pode ser esses de pipoca mesmo, só cuida para que sejam dos encerados, para escorrer a água da chuva ou do orvalho – respondia orgulhosa, sempre que perguntada sobre as três florações. – Aprendi com meu falecido Vôswaldo – concluía, baixando o olhar.
Nas colheitas, as frutas tinham destino e prioridades de entrega bem definidas: a paróquia de São Benedito, a casa da patroa Dora, amigos, vizinhos e, só depois, a própria casa. Na patroa e na igreja, viravam goiabada. A receita e o modo de preparo, quase uma liturgia, eram segredos que a dona da goiabeira nunca contava.
Apesar de sempre cochilar já nas primeiras sacolejadas de suas “verdadeiras viagens na cidade”, orientada pelo barulho das ruas, cheiros, ou pelas conversas entre os passageiros, Olita nunca perdia seus pontos de descida: no trajeto de ida, primeiro a paróquia; mais longe, na frente da farmácia Estrela, a casa da patroa.
No dia de nossa história, mesmo estando de folga do trabalho, o doce seria feito na casa da patroa.
E foi assim, sentada no seu banco preferido do ônibus, sacolejando, sentindo o cheiro de suas goiabas e cochilando que Olita sonhou com seu Vôswaldo. No sonho, a imagem do homem que ensinou a neta a podar e cuidar de goiabeiras mantinha estranhos diálogos com a realidade – com os passageiros do dia:
– Não sei do que se trata – respondeu a imagem do avô à passageira de roupas justas, de pé no corredor e que falava sobre escovas progressivas. Na cena seguinte, girando o corpo e ouvindo o diálogo do banco de trás, comentou sorrindo para a neta:
– Como as pessoas gostam de falar do clima.
Olita começou a despertar quando a fisionomia contrariada de seu avô pareceu voltar-se para uma passageira que, tendo embarcado no meio da viagem e não encontrando espelhos, ralhava com uma criança:
– Não, não peça nada, minha filha. Essas frutas, dessa gente, são sempre ruins e tem bichos.
No último momento do sonho, a figura do avô estava de costas:
– Lita, vamos embora.
– Vô, nossas goiabas não tem bicho – repetia a neta, falando com um avô que já caminhava longe e parecia não mais ouvir.
Acordada, aborrecida, Olita levantou-se, apertou o botão sinalizando que queria descer, escolheu duas goiabas e alcançou para a menina:
– Toma, filha. Perdoa sua mãe, ela não sabe o que diz.
A dona das goiabas desceu muito antes do ponto que queria, muito antes da farmácia Estrela. Naquele dia de folga, contrariando sua intenção, a goiabada foi preparada na casa paroquial.
No caminho da parada do ônibus até a casa do santo, muito acordada, a neta lembrava antigos ensinamentos do seu Vôswaldo:
– Lita, bicho da goiaba nasce na goiaba, se alimenta de goiaba, vive na goiaba. Bicho de goiaba protegida em saquinho, é goiaba.
Vitor Bertini
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Lembrou de alguém que gosta de goiabas?
Chega por hoje.
Baita história!
Farmácia Estrela ?! Acredito que eu a conheça (ou conhecia).
Forte abraço e bom final de semana.