Barbeiro de hospício
#147 Com relação aos impulsos de minha alma, faço como barbeiro de hospício.
Oceânia, 19 de maio de 1984.
BARBEIRO DE HOSPÍCIO
José Luis frequentava o bar Túlia desde sempre e nossa mesa não sabia seu nome. Chegava no início da noite, vinha sozinho, trazia um livro e um lápis, pedia um prato com carne e bebia da sua própria garrafa de vinho – uma deferência para poucos. Depois de comer, amassava o guardanapo, pedia para retirar a louça, voltava a ler e rabiscar no livro, olhava o relógio, esvaziava o que havia sobrado no cálice, acenava para o caixa e ia embora. Sem conversas. Sem variações.
Nossa mesa, numerosa e diversa – o centro do mundo no Túlia –, sabia tudo, bebia muito e discutia qualquer coisa: de disputas futebolísticas a definições kantianas; de letras de sambas a receitas de feijoada. As almas não eram pequenas.
Certa noite, durante uma argumentação mais intensa sobre a primazia da razão ou da emoção nas relações conjugais, e antes que os argumentos gritados virassem algo mais sério, uma troca de olhares incentivou Joana a ampliar a roda:
– E o nosso amigo, o que acha? Não prevalece o impulso?
José Luis aceitou a provocação. Guardou o lápis, fechou o livro, acenou para um dos garços apontando seu cálice, puxou uma cadeira, apresentou-se, disse que não gostava muito de falar, pediu perdão por ter ouvido, involuntariamente, parte da discussão e sorriu para Joana.
– Muito prazer – responderam os barulhentos, em coro.
– Não prevalece o impulso? – Repetiu Joana.
O convidado fez uma pausa dramática, tomou um gole de vinho, abriu o livro na página de rosto e leu o que havia rabiscado, traindo sua escuta involuntária:
– Com relação aos impulsos de minha alma, faço como barbeiro de hospício: ouço o pedido, sorrio, não discuto e executo, com todos os cuidados, o que manda minha razão. Entretanto, sei disso, a alma não gosta de ser enganada.
Acima do vozerio que surgiu, Joana foi à luta:
– Pode até ser. Mas, me perdoe, quem puxou a cadeira aqui, foi a sua alma. E, se ficar, também vai ser porque ela mandou. Será por impulso!
Algo encabulado, José Luis sorriu diante da gritaria.
Minutos depois, quando o garçom foi servir mais vinho, ele colocou a mão sobre o cálice e, falando baixo, comandou alguma coisa.
Ninguém soube dizer, mais tarde, se o celular do então apelidado barbeiro de louquinhos havia realmente tocado, ou não. O fato é que ele levantou, atendeu o telefone, se afastou, tapou o bocal, voltou à mesa, sorriu simpático, recolheu seu livro, disse obrigado e boa noite, acenou para o caixa e foi embora.
Só bem mais tarde, na hora de repartir a conta, é que fomos informados que ela já estava paga.
Não lembro da roupa do José Luis naquela noite nem quanto tempo ele demorou a retornar ao Túlia; o livro, lembro bem, era O que falamos quando falamos de amor, de Raymond Carver.
No mês que vem, abril, Joana e José Luis completam dez anos de casados. A alma não gosta de ser enganada.
Vitor Bertini
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Tudo ficção;
O que não é ficção, parece ficção.
O objeto do terrorismo é o terrorismo. O objeto da opressão é a opressão. O objeto de tortura é tortura. O objeto do assassinato é o assassinato. O objeto do poder é o poder. Agora você começa a me entender?
– 1984, George Orwell
A cortina, esvoaçante,
namora com o vento,
até que uma mão a puxe pra dentro.
–VB
O meu chapéu, por favor.
Bom fim de semana.
Excelente, meu amigo. Um conto com a leveza e o frescor de uma crônica. Parabéns!