As duas mortes do Comendador
#153 O Comendador, dado como morto há dez minutos, na verdade, estava vivo.
Av. Paulista, 2073 - Consolação, São Paulo, 30 de junho de 2023.
Recebi a notícia do fechamento da Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo, como uma tragédia pessoal.
Cansado para escrever, busquei parte do que ousei na dramática passagem de 20 para 21 e cantei meus dias.
Amado sempre será quem percebe meu passar; o agora que já vai, o amanhã que virá.
Amado sempre será quem acolhe meu passar; ontem, lembrança, amanhã, esperança.
Amado sempre será quem se encanta com meu passar; na vida que fiz, sorte, amanhã, norte.
Hoje, amados, pena, morte.
Com a promessa de seguir remando, ficam os votos de boa leitura e bom fim de semana.
AS DUAS MORTES DO COMENDADOR
No hospital que levava o nome da família, em uma sala reservada e decorada com uma imagem de anjo, o som abafado de vozes e soluços foi silenciado pela informação que o Comendador, dado como morto há dez minutos, na verdade, estava vivo.
– Ai meu Deus! – foi o que se ouviu com mais clareza no emaranhado de crescentes exclamações que tomou conta do ambiente.
Depois, quando as conversas retomavam o tom contido e a diretora médica do hospital já havia sido convocada para as devidas explicações, alguém perguntou:
– Como assim, “ai meu Deus”?
– Autorizei o anúncio fúnebre em todos os jornais, encomendei coroas de flores, as rádios já devem estar chamando para o velório e a prefeitura pendurou a bandeira a meio-pau. Isso sem falar nas listas de distribuição – respondeu a mais nova ruiva da família, a neta mais velha, sem tirar os olhos do celular.
– Nossa Senhora! – gemeu tia Antonella, irmã do vivo.
Mais dez minutos do agora perplexo silêncio, e o som de passos firmes anunciam a chegada da presidente do hospital, acompanhada de todo o corpo médico.
– Lamentamos informar que o Sr. Comendador, apesar dos nossos melhores esforços, veio a falecer.
– Graças a Deus! – foi dito entre vozes abafadas e novos soluços; mas é o que foi ouvido.
Vitor Bertini
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A concisão é a alma do espírito.
– Hamlet – AtoII, Cena II: Polônio
– William Shakespeare