Vitor Bertini

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A história da sexta

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#94 Meu pai, o mais analógico dos humanos, resolveu ser digital.

Vitor Bertini
May 13
9
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Tired, 13 de maio de 2022.

Às vezes, quando compro livros usados, as anotações de antigos leitores me fascinam tanto ou mais do que as histórias propriamente ditas.

Comprei em segunda mão uma edição do Histórias extraordinárias, do Edgar Allan Poe. No conto O gato preto, uma alma havia sublinhado as palavras “feiticeiras”, “gin”, “canivete” e a expressão “dissipados já os vapores de minha orgia noturna”. Achei fascinante.

Entre palavras escolhidas, afetos, goles e beijos, boa leitura e bom fim de semana.

ANALÓGICO

– Meu pai, o mais analógico dos humanos, resolveu ser digital.
– Sério? Parabéns!
– Eu poderia saber por que você está me parabenizando? 
– Sério?
– Você quer parar de dizer “sério?”. Claro que é.
– Mariana, o primeiro sério foi retórico, o segundo foi porque é uma coisa útil, inclusiva. Meio atrasado até, né? Mas, boa.
– Boa pra quem?
– Boa pra ele que não vai sentir-se excluído dos tempos e para você. Repito, vai ser bem útil. Você vai ver.
– Você não tem ideia.
– Tenho sim. Minha mãe, por exemplo – aliás, sua amiga em tudo quanto é aplicativo –, às vezes me faz passar vergonha; eu aviso algum descuido, ela se chateia, mas, no fim, é bem bom.
– Não… a tia Harriet é normal. Ela dá as rateadas dela, compartilha umas coisas estranhas, ainda apanha do corretor, mas é normal. Ela é cool.
– Você só vai precisar um pouco de paciência até ele pegar todas as manhas. Depois, é tranquilo – ele esquece você. De qualquer maneira, se conheço a minha amiga, no fim, você é quem vai querer fiscalizar o celular dele.
– Claudinha, você não está entendendo. Eu não vou precisar ensinar nada. Ele é quem está cheio de ideias e teorias. Acha que já sabe tudo – até acho que já sabe bastante mesmo – e quer discutir comigo. Quer dizer como devo usar meu celular!
– Juro que me deu vontade de perguntar “sério”? Mas, vou mudar a pergunta: como assim?
– Menina, só para dar um exemplo: ele diz que as redes sociais, e o próprio celular, são indutoras de conversas compulsivas. Diz que nas redes não existe uma coisa muito importante: o silêncio. Diz que se as pessoas ficarem sem se manifestar, as redes vão fazer elas sentirem-se excluídas; que na compulsão da fala e das opiniões, as pessoas falam do que não sabem, “dizem besteira”. Ele quer um botão – “botão”, ai meu Deus – de silêncio obsequioso. Tipo assim, “não vivenciei, não li, nem estudei isso. Posso ficar quieto?” E as pessoas entenderiam e dariam suporte ao silencioso.
– Interessante. Mas, acho que não ia funcionar muito. Botão de silêncio?
– Espera, tem mais. Ele diz que não conseguiu melhorar a imagem ou o conceito sobre nenhum amigo, ou conhecido, através das redes. Quem se saiu bem, diz ele, empatou.
– Aí eu acho que ele está muito certo.
– Começou! Era só o que me faltava.
– Mas é verdade!
– Mais: as redes seriam uma má obra de ficção, seriam fakes. Ele diz que os perfis são um monte de historinhas, que não espelham a vida. Até as pessoas que confessam defeitos tentariam fazê-lo de uma maneira engraçadinha, para parecer virtude. E que só soltam seus demônios para apontar dedos e acusar alguém de alguma coisa. Só existiriam guardiões do bem. O mal, coitado, estaria órfão nas redes.
– Muito bom… acho que tenho que conversar com seu pai… mais alguma coisa?
– Sim. Ele quer a morte dos algoritmos e adora emails. Pode?
– Peraí…
– O que foi?
– Adivinha quem acaba de me mandar um email?
– Sério?

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TAKE A PEEK

Enforquei-o porque sabia que ele me amara, e porque reconhecia que ele não me dera razão alguma para que lhe fizesse mal. Enforquei-o porque sabia que estava cometendo um pecado – um pecado mortal que comprometia minha alma imortal, afastando-a, se é que isso era possível, da misericórdia infinita de um Deus infinitamente misericordioso e infinitamente terrível.

Histórias extraordinárias – O gato preto – Edgar Allan Poe, Martin Claret, 2.000


  • Tudo ficção, sem reclames;

  • Edições extraordinárias destas histórias podem ser vistas na linha do horizonte. Mais perto, na copa das árvores, na sexta-feira, dia 20;

  • Quase tudo por aqui vai virar livro. Sugestões?

  • Livro já publicado do locutor que vos fala: Não me abandone - a saga de Bénya Krik, um cão de rua, contada pela família que ele adotou. Já leu?

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