A tragédia do canguru
#109 Para o autor, a obra é tudo. Não é preciso ficar acrescentando explicações.
Canberra, 26 de agosto de 2022.
Entre pulos e bolsas, ficção, realidade, beijos e queijos, meus votos de boa leitura e bom fim de semana.
A TRAGÉDIA DO CANGURU
– Você quer comprar um número de uma rifa?
– Rifa? Em benefício do quê?
– Para ajudar em um relacionamento que está na iminência de se transformar em tragédia.
– Tragédia? Que tragédia? Rifa do quê?
– De um canguru…
– Só o que me faltava. Tragédia… canguru… E lá você tem um canguru?
– Não tenho o canguru, ainda.
– E como você pode rifar o que não tem?
– Vendo os números, arrecado o dinheiro, compro o canguru, sorteio o canguru, entrego o canguru. No meio tempo, evito uma tragédia.
– Quantos números são, essa sua rifa?
– Tantos quanto necessário. Quantos você vai querer?
– Sei lá… Quanto custa o número?
– Ainda não sei. Escolha seus números da sorte, me diga quanto você quer pagar, abra uma lista com seu nome e telefone e eu começo a evitar a tragédia.
– O que você sabe sobre cangurus?
– Haruki Murakami escreveu A Perfect Day for Kangaroo. Acho que só tem em japonês. A história gira ao redor de um canguru bebê.
– E você leu este livro?
– Não, não li.
– E o que ele tem a ver com a rifa?
– A presença de um canguru.
– E você sabe onde comprar um canguru?
– Na Austrália.
– Estou achando você engraçado. Meu nome é Júlia.
– Sou interessante, é diferente de engraçado. Meu nome é Pedro, muito prazer.
Poucos dias depois, no primeiro encontro dos colegas de vestibular simulado, entre risos, fatias de pizza, confidências e justificativas para as carreiras escolhidas, Júlia chegou ao inevitável assunto da rifa:
– Afinal, que história é aquela do canguru?
– Em 1Q84, outro livro do Murakami, tem um personagem, o Tengo, que afirma: “Para o autor, a obra é tudo. Não é preciso ficar acrescentando explicações.”
– Este, pelo menos, você leu?
– Hum-hum, os três volumes.
– Sim, mas e a tragédia?
– Tragédia seria você desaparecer da minha vista e este papo nunca acontecer. Já ganhei meu canguru – concluiu Pedro, sorrindo de uma forma interessante.
Julia achou engraçado.
Vitor Bertini
No te olvides de compartir:
.
TAKE A PEEK
Em M., grande cidade no norte da Itália, a marquesa de O., senhora de reputação ilibada, viúva e mãe de vários filhos bem-educados, publicou a seguinte notícia nos jornais: que, sem que soubesse como, estava grávida; que gostaria que o pai da criança que daria à luz se apresentasse; e que estava decidia, em consideração à sua família, a desposá-lo.
– A marquesa de O., Heinrich von Kleist
.
Por aqui, tudo é ficção; nenhuma palavra em vão. Indeed;
Esse hebdomadário perdeu seu cavalo, continuou andando, viu a miragem de Pasárgada e – em verdade vos digo – vai parir um livro;
Vender é contar histórias é uma palestra em construção: tijolo por tijolo em um desenho lógico;
Quem acha que o parágrafo de A marquesa de O. reproduzido acima exagera na ficção é porque não leu a biografia do Kleist;
Antiga e persistente mensagem na garrafa: você que chegou até aqui por curiosidade, gosto ou preguiça, ajude o autor clicando em qualquer botão verde ou convite em espanhol perdidos por aí.
Parabéns, amigo. Cangurú é ótimo.