A serenata dos anjos - versão completa
#245 Me debrucei na janela, apurei o ouvido e reconheci a doce música que encantava minha mãe, a alegre Serenata dos Anjos.
Casa Verde, 21 de março de 2025
A pedidos, segue a versão completa do texto A serenta dos anjos. Como ele é longo para os padrões desta publicação, vai sem papo.
A SERENATA DOS ANJOS
Mamãe chegava de mansinho, sentava na borda da cama e passava a mão na minha cabeça:
— Bom dia, meu filho.
Depois, sorria para os olhos que abriam, abria a janela, dizia do clima e estendia a mão para eu levantar. Lembro disso.
Lembro também da delicadeza de seus gestos; do seu corpo franzino e de seus olhos fundos; de uma vaga sensação de segurança em seu abraço; de seus vestidos bons de tocar e do seu cabelo preso com passadores.
Às vezes, ainda na janela, respirando fundo, ela inclinava a cabeça como quem apura o ouvido, regia os passarinhos e perguntava se eu conseguia ouvir a música dos anjos.
Nunca respondi. Meu sorriso constrangido só foi reconhecer a melodia que encantava minha mãe muitos anos mais tarde, em outras janelas, em meio a outros cantares.
Naquele tempo, nossa casa ficava em um bairro atendido por duas linhas de ônibus, tinha uma garagem vazia e havia sido de meus avós maternos. Era a casa da minha mãe. Eram dela os jardins, as cortinas, os móveis, os cachorros, os afazeres, os livros e o piano. Do meu pai, uma jaqueta de couro e os caniços. De todos nós, os silêncios. Primeiro, como refúgio de intimidade; a seguir, como constrangimento.
— Eu não entendo mais o que essa mulher fala — queixava-se meu pai, sentado para o jantar, ainda vestindo o casaco que chegara da rua, e sem receber resposta ou explicação.
O que parecia ser a rotina de uma vida — todos em casa à tardinha, café e conversas amenas — foi cedendo lugar para atrasos cada vez maiores, frases ásperas e prolongados silêncios. Durante o dia, mamãe chorava sem motivos; à noite, refugiava-se ao piano.
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Foi nessa época, sentado no banco da praça a caminho da escola, pensando em não voltar para casa, que ouvi, pela primeira vez, o pássaro falar:
— Nós somos o conjunto de nossas memórias — reverberou seu pescoço.
Ouvi o que ouvi, respirei duas vezes, vi seu mudo bico aberto e uma língua vermelha, recolhi a frase e sustentei seu olhar até o último momento; na sua partida, olhei para os lados, juntei uma pena caída e fui para o colégio.
No caminho, pensando no que ouvira, sorri satisfeito: o conceito me agradava. O pássaro me fizera bem. Eu estava bem.
Na escola, com a certeza da pena na mochila, calei sobre tudo. Eu estava muito bem.
Foi só após a aula, voltando para casa, na mesma praça, em frente ao mesmo banco onde pousara aquela enorme sombra de asas desproporcionais que a ideia de que eu ouvira um pássaro falar me pareceu estranha. Não sentei. Andando a esmo procurei marcas de suas ciscadas e com uma mão tapando o sol vasculhei os céus em busca de seu vulto. Um minuto mais tarde, ao baixar o olhar, vi Maria pela primeira vez.
Na vida que seguiu, segui Maria e só voltei a receber visitas do pássaro quando as plantas dos jardins da nossa casa começaram a substituir as teclas do piano da minha mãe:
— Você consegue ouvir a música, meu filho? Os anjos também cantam com as flores — perguntou escondendo os olhos, na primeira vez que a vi sentada nos jardins.
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Nunca briguei com a rotina. Naqueles dias de casa, escola e rua, a mesa do jantar ficava posta, minha espera era feita de ler revistas e quando meu pai chegava, mamãe sentava ao piano.
Certa noite, diferente do esperado, o jantar foi mais longo, a música mais intensa, a melodia ganhou vida, a pianista cantou, quem jantava mastigou mais forte, eu fui até o piano e encostado na sua lateral vi meu pai levantar-se. Foram dez passos envolvidos pela música, dez passos em direção ao piano e ao sorriso de um menino. Ao meu lado, ainda mastigando, sua mão forte e decidida, para espanto dos meus olhos, fechou a tampa do piano nas mãos da minha mãe. As rotinas da casa mudaram para sempre: nunca mais saí para pescar com meu pai; sozinha, mamãe nunca mais sentou ao piano.
Nossos jardins, antes incorporados ao nebuloso terreno das coisas que existem mas não vemos, assumiram o centro dos haveres de nossos dias: plantar, regar e podar passaram a ser tarefas inadiáveis, flores viravam notas musicais e as horas passavam devagar. Para os serviços de jardinagem mamãe carregava o banco do piano; para o filho, mandou fazer um banco de madeira com vista para os céus. Gostei do banco. Gostei da vista.
Daquele canto do mundo eu via a grama correr até o muro da rua, via a rua, via a esquina mais distante, via nossa casa e seus jardins; via os dedos tortos da minha mãe alisando flores e em silêncio eu namorava os céus.
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Não sei quanto tempo da minha vida passei sentado naquele banco, construindo memórias – nunca briguei com o tempo.
— Minha sombra, que você não viu chegar, o tamanho das minhas asas, o som da minha voz e tudo o que digo podem ser apenas frutos da sua imaginação.
— Então, você não existe? — Reagi por impulso, enquanto me virava para ver, pela segunda vez, agora às minhas costas, pousado no gramado, o pássaro que eu sabia que viria.
— Pense como você quiser — respondeu, fixando os olhos em mim. — Se estou na sua memória, tenho a mesma dimensão de seu pai. Seu pai existe?
— Existem as mãos da minha mãe. — Lamentei com voz mais alta, só para ouvir, vindo da nossa casa, a pergunta de uma vida:
— Você está bem, meu filho?
— Estou muito bem, mamãe. — Respondi, procurando identificar o cômodo de onde viera a voz.
— Pensei ter ouvido uma expressão de do
— Nada. Estou muito bem. — Repeti ao vento, voltando a olhar para o gramado, novamente vazio.
Depois, por alguns instantes, agucei meus sentidos e esperei em vão. Na ausência do pássaro, pensativo, levantei e fui conferir a pena que um dia eu recolhera e guardara. No caminho de volta do meu quarto, passando na cozinha, beijei minha mãe.
Com a certeza da pena, voltei para o banco.
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Não tenho fotos pescando com meu pai, tenho vagas lembranças. Incorporado em minhas memórias, tenho o dia em que ele posou com seus caniços fincados na areia, peixes exibidos em uma das mãos e o braço da outra mão sobre os ombros da minha mãe, então sua namorada. Lembro do cheiro da maresia e sinto espanto na fotografia: a eterna volta daquele momento irrepetível que assimilo como memória; vejo a pose – e sei que sempre que posei não era eu –, e vejo os olhos que viram meus ancestrais.
Tenho memórias de fatos que não vivi. Um dia, perguntada a respeito, mamãe sorriu, largou as flores, levantou, limpou as mãos no avental, veio até onde eu estava e beijou minha testa. Quando voltou, trazia dois cafés, sentou ao meu lado e disse que sabia que eu era especial. Pensei no pássaro e calei. Às vezes, na vida, precisamos confirmar nossas certezas.
Para quem vinha a pé da cidade, Maria morava depois da nossa casa. O trajeto que encantava meus olhos ia da esquina de cima à esquina que eu chamava de mais perto. Quando nosso jardim floria, Maria diminuía o passo. No início, ela sorria para as flores, depois para minha mãe; quando Maria sorriu em minha direção, decidi não brigar com o destino.
— Pensando em namorar? — Cantou a voz rouca que eu não esperava; não desta vez.
— E se eu estiver, isso faz alguma diferença para você? — respondi sem pensar, incomodado com a pergunta.
—Para mim, nenhuma. Para você, parece, toda — disse o pássaro, alternando seus olhos em direção à rua.
— Não entendo esse seu interesse.
— É você que tem interesse, e eu não me oponho a ele. É você que quer falar comigo e eu estou à sua disposição.
— Por acaso olhei para os céus? Te chamei?
— Você pensa em mim obsessivamente — retrucou o pássaro antes que eu retomasse o fôlego, voltando a cabeça em minha direção.
Assombrado pelo rumo da conversa e procurando argumentos, meu minuto de silêncio foi quebrado com uma insinuação:
— Quem sabe você a convida para ir pescar?
— Eu não faço pose — devolvi saltando do banco, só para ver suas asas abertas no impulso de alçar vôo e ouvir seu último canto:
— Peça ajuda para sua mãe!
Nunca pedi. Um dia, de roupão e chinelos, pedi Maria em casamento.
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— Bom dia?! — murmurei incrédulo, interrompendo seu passeio secreto e solitário nos caminhos de nossos jardins.
— Acho que será — respondeu um rosto de olhar sereno, espiando para o céu que amanhecia. — Espero que você não se importe com minha invasão aos domínios da família. Sua mãe sempre me convida.
— Não me importo nem um pouco; pelo contrário, seja muito bem-vinda. Mamãe é uma mulher educada, generosa e sábia — afirmei, sugerindo com um gesto de mão a continuação do passeio. — Posso fazer as honras?
A resposta veio acompanhada de um sorriso contido, de um olhar mais demorado e da repetição do gesto que eu fizera:
— Vamos?
Quase cúmplices caminhamos devagar, falamos pouco, apontamos flores, percorremos os canteiros e seguimos até o meu banco; sentados, contamos nossas histórias. Sentado, espiei para o céu algumas vezes e, antes que o sol nascesse inteiro, pedi Maria em casamento.
Sem dizer palavra, Maria abriu um sorriso e beijou a flor que havíamos colhido.
Um pouco mais tarde, quando Maria foi embora, sereno, repetindo seu nome em voz baixa, voltei para a cama.
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Nunca tive um padrão de sono. Na manhã em que acordei ao som de um dedilhar de piano, dei um pulo, me vesti às pressas e saí do quarto, só para confirmar quem eram as improvisadas professora e aluna. Cruzei a sala dizendo bom dia, perguntei se alguém queria café e fui para a rua caminhar.
Saí desviando dos olhares e no caminho, pensando em minha mãe, em Maria e naquele piano, como se a vida andasse em círculos, terminei sentado na praça em que ouvi o pássaro falar pela primeira vez.
— A vida é uma coleção de incertezas — disse a voz que eu conhecia, fazendo coro com o vento.
Embaralhado pelo fato de ouvir seu canto sem conseguir vê-lo, olhando para todos os lados, calei. Ele não.
— Foi daqui que você saiu para seguir Maria, mas não volte trazendo sua mãe, o piano e as lembranças do seu pai. Fique tranquilo, suas memórias vão fazer sua vida parecer ter sentido.
Ainda calado, eu sabia o que tinha ouvido; satisfeito, quase exultante, decidi voltar para casa. Eu estava bem. Eu estava muito bem: o tempo continuaria a ser meu aliado; eu estava decidido a não brigar com minhas memórias e eu haveria de entender que as pessoas comuns precisam ver relações causais nos fatos de suas vidas. Eu não era um comum.
— Você demorou. Sua Maria não pôde esperar — afirmou mamãe na minha chegada, apontando um bule de café e dizendo, do seu jeito, que sabia da minha relação.
— Ninguém me contou que vocês iriam encontra-se, nem das circunstâncias ou pauta do evento — respondi por impulso, puxando uma cadeira.
Sentado, lembrei do pássaro, me arrependi da resposta e mudei de assunto. Acho que falamos sobre flores.
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No passar das estações, na casa que nunca deixou de ser da minha mãe, caminhando entre jardins cuidados a quatro mãos e calado sobre muitas coisas, casei com Maria.
A nova rotina, a rotina de três sorrisos e cheiros bons, durou dois anos. Durou até o dia em que, dobrando na esquina de cima, vi Maria sentada no meu banco, nos jardins da nossa casa. Sozinha.
Abraçados, solidários na vida, choramos a incompreensão da morte. Choramos as dores da saudade que sentiríamos e a pena que sentíamos de nós mesmos. Mais tarde, entre soluços, as primeiras decisões:
— Acho que não devemos seguir morando aqui. Será muito triste.
—Como você preferir — respondi, apertando suas mãos enquanto tentava parar de pensar no meu pai.
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Nossa nova casa é uma boa casa. Ela tem uma área de árvores e flores perto da cozinha, um gramado grande e um muro baixo, bom de sentar; dentro dela, eu tenho um escritório e uma cadeira de leituras. Do lado de fora, em um lugar que escolhi, tenho um banco de jardim.
Em dois anos nasceu nosso filho, e voltamos a ser três sorrisos.
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Depois de adulto, nunca tive um sonho bom. Depois da morte da minha mãe, piorou.
Primeiro, bastava despertar, virar para o lado e espantar os fantasmas. A seguir, a fase de acordar, ter a certeza de ser pesadelo, pegar um livro e cuidar para não acordar Maria. Nos últimos tempos, despertar virou refúgio e sair da cama uma necessidade.
Em um período especialmente crítico de madrugadas empadas de suor e sobressaltos, o caminho da rua e os olhares para o céu eram pedidos de ajuda para acalmar minha alma. Eu buscava ajuda para entender os choros da Maria, os silêncios do nosso filho, as contrariedades do dia a dia, o meu destino e própria vida. Buscava a serenidade das coisas que fazem sentido. O desaparecimento do pássaro era injusto. Seu desaparecimento não fazia sentido.
Minhas angústias quase desapareceram no dia em que meu filho, chegando em casa, me procurou:
— Pai. Hoje, voltando da escola, um estranho pássaro falou comigo. Pode ser
— Pode — respondi sem pensar.
A seguir, emocionado, corri ao escritório, recuperei a pena e voltei para beijar meu filho.
— Pode sim — repeti, apertando o abraço — guarde esta pena. É dele! — falei ao seu ouvido.
Depois, enquanto ele examinava a pena, concluí:
— Não conta nada pra ninguém. Nem pra sua mãe.
O desaparecimento do pássaro estava justificado. Agora, fazia sentido: a necessária transição entre gerações, a própria razão da existência. Mais do que nunca, meu filho era eu. Em seus silêncios, a certeza da sua excepcionalidade: ele já falava com o pássaro.
Meu sono estava melhor.
Na noite em que tive uma recaída, uma noite agitada, saí da cama cedinho e fui, em vão, encostado no banco, olhar para os céus. Só quando baixei o olhar é que vi o grupo de freiras com seus enormes chapéus corneta de abas brancas balançando como se fossem asas, caminhando em silêncio.
Também foi só quando baixei o olhar que vi nosso filho espiando na janela. Sereno, voltei para a cama.
Às vezes, na vida, precisamos confirmar nossas certezas.
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Na manhã de outra noite mal dormida, na segunda vez em que precisei confirmar as conversas do pássaro com meu filho, fiz mais simples:
— Bom dia, meu filho.
— Bom dia, meu pai.
—Perdoa as inseguranças do teu pai. Deixa eu fazer uma pergunta, antes da sua mãe aparecer. Sei que é uma demasia; mas, como andam suas conversas com nosso amigo?
Depois, não lembro o tempo em que me obriguei a ficar sentado no banco do jardim, vasculhando os céus. Fiquei até o momento em que ele chegou flanando, silencioso, e pousou ao meu lado. Pousado, ficou quieto um tempo. Depois, já no chão, alternando os olhos no ritmo sincopado de seu pescoço, catou algumas migalhas e ficou me encarando.
— Você sabe que meu filho quer ir pescar?
— Deveria saber? – Reverberou seu pescoço, como na primeira vez em que falamos.
— Se você fala com ele, deveria.
— Você não fala com seu filho? — Provocou um bico aberto, expondo sua língua vermelha.
— Falei, e ele acha que estou doente.
— E não está? — Cantou o pássaro, abrindo as asas sem sair do lugar.
Irritado com a insinuação, comecei a gritar:
—Você não fala com meu filho? Como ele, você também não sabe de nada? Ele diz que não sabe de penas, que não tem ideia sobre o que estou falando. Você sabe quanto isso mexe comigo! Você sabe o quanto você é importante para mim. Tu me conheces há muito tempo! — Gritei. E calei.
Calado, comecei a caminhar, dando voltas e a apontar na direção daquela criatura. Rindo alto, acelerei o passo; gargalhando, levantei as mãos aos céus:
— É isso! Falamos há muitos anos, há muitos anos, e você não envelhece! Você não fica mais velho; você é sempre o mesmo. O mesmo! Você não existe. Nada faz sentido.
Rodopiei até cair em um mundo escuro.
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Hoje, acordei melhor. Abri os olhos e sorri. Abri a janela e a brisa me estendeu a mão. Me debrucei na janela, apurei o ouvido e reconheci a doce música que encantava minha mãe, a alegre Serenata dos Anjos.
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Hoje, acordei muito melhor. Vejo as pessoas lá em baixo me olhando, vejo jardins cuidados, sinto o orvalho das nuvens e acho que em breve o pássaro vem voar comigo. Só aguardo Maria e meu filho acordarem para abanar para eles.
Vitor Bertini
Uma generosa e sábia decisão: comprar livros.
Uma ação generosa:
A prática da generosidade, como a palavra moderna e a liberdade de expressão, morreu ontem.
— Nada tenho que ver com a ciência; mas, se tantos homens em quem supomos juízo são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?
— Sebastião Freitas, o vereador dissidente, em O Alienista, Machado de Assis.
No livro O Alienista, o sanatório fundado pelo Dr. Simão Bacamarte se chama Casa Verde e fica na cidade de Itaguaí. Hoje, a Casa é verde e amarela. Itaguaí é aqui.
Boas leituras.