A serenata dos anjos I
#239 — Nós somos o conjunto de nossas memórias — reverberou seu pescoço.
Revista Brasileira, 7 de fevereiro de 2025
É do personagem Pacheco em A correspondência de Fradique Mendes, Eça de Queiroz, o ensinamento que “talento verdadeiro só deveria conhecer as coisas pela rama” — enquanto esboçava, com a mão gorda, o voar superior de uma asa por sobre o arvoredo copado.
Homem de um imenso talento nunca revelado, Pacheco fez história e carreira na vida pública portuguesa.
Eu, de minha parte, sem querer fazer mais do que voar sobre a copa das informações, preciso dizer que a publicação de obras literárias em fascículos é coisa antiga.
Foi assim com Crime e Castigo, na revista O Mensageiro Russo, e com o insuspeito Machado de Assis e suas Memórias póstumas de Brás Cubas, publicada aos pedaços na revista que empresta o nome à localidade desta escrita de hoje.
Entretanto, junto com o pretensioso gesto de também publicar uma história em capítulos semanais, faço diferente: enquanto os mestres iam do fascículo ao livro, saio do livro A Profeflor para esta publicação semanal. Nada além das minhas sandálias.
Sejam, como sempre, muito bem-vindos.
A SERENATA DOS ANJOS I
Mamãe chegava de mansinho, sentava na borda da cama e passava a mão na minha cabeça:
— Bom dia, meu filho.
Depois, sorria para os olhos que abriam, abria a janela, dizia do clima e estendia a mão para eu levantar. Lembro disso.
Lembro também da delicadeza de seus gestos; do seu corpo franzino e de seus olhos fundos; de uma vaga sensação de segurança em seu abraço; de seus vestidos bons de tocar e do seu cabelo preso com passadores.
Às vezes, ainda na janela, respirando fundo, ela inclinava a cabeça como quem apura o ouvido, regia os passarinhos e perguntava se eu conseguia ouvir a música dos anjos.
Nunca respondi. Meu sorriso constrangido só foi reconhecer a melodia que encantava minha mãe muitos anos mais tarde, em outras janelas, em meio a outros cantares.
Naquele tempo, nossa casa ficava em um bairro atendido por duas linhas de ônibus, tinha uma garagem vazia e havia sido de meus avós maternos. Era a casa da minha mãe. Eram dela os jardins, as cortinas, os móveis, os cachorros, os afazeres, os livros e o piano. Do meu pai, uma jaqueta de couro e os caniços. De todos nós, os silêncios. Primeiro, como refúgio de intimidade; a seguir, como constrangimento.
— Eu não entendo mais o que essa mulher fala — queixava-se meu pai, sentado para o jantar, ainda vestindo o casaco que chegara da rua, e sem receber resposta ou explicação.
O que parecia ser a rotina de uma vida — todos em casa à tardinha, café e conversas amenas — foi cedendo lugar para atrasos cada vez maiores, frases ásperas e prolongados silêncios. Durante o dia, mamãe chorava sem motivos; à noite, refugiava-se ao piano.
Foi nessa época, sentado no banco da praça a caminho da escola, pensando em não voltar para casa, que ouvi, pela primeira vez, o pássaro falar:
— Nós somos o conjunto de nossas memórias — reverberou seu pescoço.
Ouvi o que ouvi, respirei duas vezes, vi seu mudo bico aberto e uma língua vermelha, recolhi a frase e sustentei seu olhar até o último momento; na sua partida, olhei para os lados, juntei uma pena caída e fui para o colégio.
No caminho, pensando no que ouvira, sorri satisfeito: o conceito me agradava. O pássaro me fizera bem. Eu estava bem.
Na escola, com a certeza da pena na mochila, calei sobre tudo. Eu estava muito bem.
Foi só após a aula, voltando para casa, na mesma praça, em frente ao mesmo banco onde pousara aquela enorme sombra de asas desproporcionais que a ideia de que eu ouvira um pássaro falar me pareceu estranha. Não sentei. Andando a esmo procurei marcas de suas ciscadas e com uma mão tapando o sol vasculhei os céus em busca de seu vulto. Um minuto mais tarde, ao baixar o olhar, vi Maria pela primeira vez.
Na vida que seguiu, segui Maria e só voltei a receber visitas do pássaro quando as plantas dos jardins da nossa casa começaram a substituir as teclas do piano da minha mãe:
— Você consegue ouvir a música, meu filho? Os anjos também cantam com as flores — perguntou escondendo os olhos, na primeira vez que a vi sentada nos jardins.
…
Continua na próxima sexta-feira, dia 14.
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Um dos papos da semana, lá no emplasto Vitor Bertini:
Como diz a página 139 do livro A Profeflor: Chega por hoje.