A pena
#226 Chegou flanando, silencioso, e pousou ao meu lado, no banco da praça.
The Black Monk, 15 de novembro de 2024
Os pássaros parecidos, aqui na minha janela, são, na verdade, pássaros diferentes.
Entre pios piedosos, pingos de pinga e parágrafos pungentes, boa leitura e bom fim de semana.
A PENA
Chegou flanando, silencioso, e pousou ao meu lado, no banco da praça. Pousado, ficou quieto um tempo. Depois, já no chão, alternando os olhos no ritmo sincopado de seu pescoço, catou algumas migalhas, disse algumas coisas e ficou me encarando – até ir embora. Ainda sou capaz de sentir no rosto a lufada de ar quente com pó e de ouvir o barulho surdo de suas asas enormes.
Acompanhei sua trajetória em direção aos céus até o momento em que ele, voltando a cabeça, tornou a me olhar. Levantei do banco, juntei a pena que caíra, pensei na desproporcionalidade entre seu corpo e a envergadura de suas asas e, atrasado para a escola, segui meu caminho. Eu tinha ouvido um pássaro falar.
Naquele tempo eu não era muito forte, as meninas iriam fazer perguntas e achei melhor calar sobre o que havia acontecido. Um pouco mais tarde, após a aula, já em casa, também não contei nada: meu pai e minha mãe não andavam se entendendo bem – depois, piorou.
Na universidade, estudei exatas: a força era massa vezes aceleração e o tempo, relativo. Mantive a pena escondida e deixei a neve cobrir os telhados da vida. Gostei.
São anos de silêncio, bancos ao ar livre sempre que me sinto desafiado e olhares para o céu quando enfrento problemas complexos – as pessoas não sabem em que voos busco respostas.
Acredito que a vida seja assim: falamos sobre algumas coisas e calamos sobre outras.
Maria é minha esposa. Maria não sabe nada sobre pássaros e nosso casamento vai bem. Tivemos um filho saudável; ela perdeu o emprego mas não dá muita bola; quando chora diz que não é nada; parece divertir-se com meus olhares para o céu e até comprou um banco de madeira para colocar no jardim.
Só estou contando tudo isto agora, porque ontem foi um dia especial:
– Pai. Hoje, voltando da escola, um estranho pássaro falou comigo. Pode ser?
– Pode – respondi sem pensar.
A seguir, emocionado, corri ao escritório, recuperei a pena e voltei para beijar meu filho.
– Pode sim – repeti, apertando o abraço – guarde esta pena. É dele! – falei ao seu ouvido.
Depois, enquanto ele examinava a pena, concluí:
– Não conta nada pra ninguém. Nem pra sua mãe.
Vitor Bertini
A apresentação e a própria história de hoje fazem parte do livro A Profeflor, páginas 90 e 91.
No livro, para quem tem ouvidos, a história desdobra-se em outras duas.
A lojinha, testemunha de um escritor vivo:
Livros do Bertini:
Não me abandone
A Profeflor
Publicações do mesmo cidadão:
Unleashed Stories
A história da sexta
Ficamos assim:
— Não pode haver nenhum erro sobre o caso. Nossas autoridades, tanto quanto me é dado conhecê-las, e só conheço as de grau inferior, não costumam sair à procura de criminosos no meio do povo, mas, conforme a lei determina, dirigem-se aos culpados por intermédio de nós, os guardas. É a lei. E como poderia ela estar errada?
— Não conheço tal lei — disse K.
— Tanto pior para o senhor — replicou o outro.
— Ela provavelmente só existe na sua cabeça — retrucou K., com a intenção de penetrar nos pensamentos dos dois e torcê-los a seu favor, ou então tentar adaptar-se a eles.
O guarda, porém, limitou-se a dizer, em tom desanimador:
— O senhor logo terá que enfrentá-la. Olhe só, Willem, ele admite não conhecer a lei, contudo afirma ser inocente.— O Processo, Franz Kafka
Força na peruca.