Alsácia, 2 de fevereiro de 2024.
Há um ano, encaminhei para vocês um texto intitulado A aranha de Zola, seguido de outro que chamei de A biografia não autorizada de Émile Zola – uma ousadia.
Na ousadia, inventei uma confusão com a pronúncia de seu sobrenome, cometi dois parágrafos sobre temas literários e, antes de narrar sua morte e me surpreender com a Academia Francesa de Letras, relembrei as circunstâncias do Caso Dreyfus e as consequências da sua carta aberta J’Accuse.
Depois, na seção Aviso aos navegantes, provoquei perguntando: “Tudo ficção, certo?”
Passado um ano daqueles textos, espantado, respondo à pergunta que fiz com a reedição de tudo o que escrevi naquela sexta-feira.
Consegui ler o Germinal, afastando a aranha que estava na capa do livro. O mal, acusado por Émile Zola, está vivo.
A ARANHA DE ZOLA
O livro Germinal, de Émile Zola, retirado da velha prateleira, tinha uma aranha na capa.
“Na planície rasa, sob a noite sem estrelas, de uma escuridão e espessura de tinta, um homem caminhava sozinho pela estrada real que vai de Marchiennes a Montsou, dez quilômetros retos de calçamento cortando os campos de beterraba.” Página onze, primeiro parágrafo da Primeira Parte, só possível pela partida da aranha.
Na página catorze um velho cuspiu preto e na dezesseis, sorrindo, um personagem apresentou-se como Boa Morte. Tudo em vão: eu, menino de cidade, havia ficado parado, sonhando acordado, ainda na planície rasa, numa noite sem estrelas, lá na página onze, nos campos de beterraba.
Vitor Bertini
A BIOGRAFIA NÃO AUTORIZADA DE ÉMILE ZOLA
Émile Zola (1840 – 1902) foi um notável escritor e ativista francês. Filho de pai italiano – Francesco Zola – e mãe francesa, Émile viveu assombrado pela secreta polêmica formada em torno da correta pronúncia de seu sobrenome.
Admirador de Balzac, influenciado pelos estudos de Charles Darwin, pelo cientificismo e pelo positivismo, Zola é considerado o idealizador e principal nome da escola literária conhecida como Naturalista.
Autor de estilo simples e direto, sua principal obra chama-se Os Rougon-Macquart, tem como subtítulo A história natural e social de uma família sob o segundo império e é composta por vinte romances, todos escritos entre 1871 e 1893.
Em 1898, graças ao seu envolvimento no Caso Dreyfus e como retribuição ao seu artigo J’accuse (em que acusava o governo de erro judiciário e antissemitismo) foi condenado a um ano de prisão, indo exilar-se na Inglaterra.
Faleceu em 1902, em Paris, asfixiado com a inalação de monóxido de carbono originário de sua própria lareira, presumidamente defeituosa.
Émile Zola foi preterido nas vinte e quatro vezes em que apresentou candidatura para ingressar na Academia Francesa de Letras. Não sabiam como falar seu sobrenome – deve ser isso.
Vitor Bertini
Pelo registro e porque me agrada, aqui vão os conteúdos que eram só para assinantes pagos, naquele fevereiro de 2023:
Agora que as visitas foram embora, deixa eu mostrar uma biografia autorizada:
Invejo – mas não sei se invejo – aqueles de quem se pode escrever uma biografia, ou que podem escrever a própria. Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer.
– Livro do Desassossego, Fernando Pessoa
Tendo dado o prazo por findo – e restando tanto a fazer –, tomo, ainda uma vez, por identificação, o Desassossego por espelho. Depois, deixando beijos, tomo meu rumo.
E como, ao sair eu, o criado verificasse que a garrafa de vinho ficara no meio, voltou-se para mim e disse: “Até logo, Sr. Bertini, e desejo as melhoras.”
– Fernando Pessoa