Anão não é gigante em desenvolvimento, 6 de outubro de 2023.
35mm
A essa altura dos acontecimentos e por tudo que ainda será contado, o paciente leitor ou leitora poderia pensar seriamente nas razões pelas quais dois personagens dessa narrativa tem praticamente o mesmo nome: o açougueiro Georgy e o cão Gorge.
A explicação está na simples obediência à verdade. O nome de batismo do açougueiro é Georgy Butka, e Gorge, o cão forte e apaixonado pela Prudência, tem esse nome por decisão de Dona Alice. A última coisa que esse narrador fará é faltar com a verdade, ou contrariar Dona Alice.
Na ronda pelas ruas do bairro, a Prudência era toda atenção. Gorge, como todo apaixonado, trouxe para si as tarefas de proteger sua amada, ser bobo e exibir sua força. Valente até cansar, perseguiu automóveis, latiu a tudo que voava e rosnou para quem usasse chapéu. Cansado, voltou para o lado de sua amada. Aconselhado, recolheu seus impulsos e tratou de ficar à disposição.
Trinta de Agosto encontrou Vinte e Nove caminhando em direção ao cemitério. Puxado pela barra da calça, o andarilho não se fez de rogado e mudou seu destino, agora acompanhando o cão em direção à redação do jornal de Marga Tilden.
– Troco o local onde tantos estão enterrados pelo local do enterro de uma só – falou arregalando os olhos.
Como o atento e sábio cão que sentava ao ouvir verdades seguia caminhando impassível a seu lado, Vinte e Nove completou:
– Ali, só a verdade está enterrada!
Mesmo atrasando a jornada, Trinta de Agosto sentou.
A sede do Maior Jornal do Mundo ficava em um prédio de dois andares rodeado por caminhos floridos, bancos de madeira, duas fontes e uma pequena placa em bronze homenageando os primeiros Tilden, todos imigrantes. No térreo, onde ficavam as oficinas e o parque gráfico, a ventilação era mecânica e as paredes externas eram cobertas por lonas ilustradas com reproduções de antigas edições do jornal. No segundo andar, local da redação, todas as paredes eram vazadas por uma sequência horizontal de janelas, cada uma com seis caixilhos deitados e quatro em pé. À noite, andar ao redor do prédio iluminado era como assistir a uma enorme projeção de um filme mudo em 35mm.
Na terceira noite de vigília, vendo um personagem cruzar todas as janelas, parar na última e ficar afastando com os polegares os suspensórios enquanto tomava café com a senhora com um cão no colo, Vinte e Nove de Agosto sentenciou:
– Não sei quem é dono de quem neste mundo de Deus. Mas na dúvida, meu amigo, aposte em quem sabe usar suspensórios. Trinta de Agosto ouviu a frase, levantou as orelhas e sentou novamente.
Vitor Bertini
Cada um é filho das suas obras.
– Don Quixote, Parte 1, Capítulo 47 - Miguel de Cervantes
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Observações sobre a vida que dá voltas:
Na semana passada, a título de mostrar os dois primeiros parágrafos do prólogo do livro que um dia virá, mencionei, entre outras admirações, Anton Chekhov;
Os dois primeiros parágrafos do texto de hoje, um capítulo do livro Não me abandone, é uma pequena homenagem ao texto Os dois Volódias, do mesmo Chekhov;
No conto do russo, uma mulher chamada Sofia se ilude com a ideia de estar apaixonada por seu marido, alguns anos mais velho, o primeiro Volódia. O segundo Volódia, por quem ela também se apaixona, é um amigo de infância. O fato dos dois homens terem o mesmo nome não é ponto central do texto.
O açougueiro Georgy e o cão Gorge não tem o mesmo nome.
Falando em Não me abandone, clique no cão*:
* Uma ilustração de Alexandre Torrano
Tendo mencionado o santo, cumpre rezá-lo. Seguem os últimos parágrafos de Os dois Volódias:
Volódia enfiou o cano do revólver na boca, encontrou o que lhe parecia ser o gatilho e apertou… Depois, sentiu outra saliência, e tornou a apertar. Tirou o cano da boca, limpou-o na gola do casaco e examinou a trava; nunca antes tivera uma arma nas mãos…
“Parece que é preciso levantar isto…”, pensou. “Sim, parece que é isto…”
Volódia voltou a enfiar o cano na boca, prendeu-o com os dentes e apertou algo com um dedo. Ouviu-se o estrondo de um tiro. Algo bateu com muita força na sua nuca, e ele caiu sobre a mesa de cara contra os copos e garrafas. Depois viu seu pai usando uma cartola com uma larga fita preta, de luto por uma senhora de Menton, abraçá-lo com os dois braços, e ambos caíram de cabeça em um precipício muito fundo, muito escuro…
Depois tudo ficou borrado e desapareceu.
Agora, desapareço eu.
Muito bom, saboroso de ler. Confesso que toda sexta-feira, procuro o e-mail alvissareiro da sua crônica. É uma sensação evocatica de quando era criança e minha mãe permitia-me abrir a caixa de joias e contemplar o brilho que dali escapava. Era uma forma de viajar, assim como é ler você.